quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Atomium em Bruxelas, para os amantes de arquitetura e ciência

O Atomium de Bruxelas.
O Atomium é a Torre Eiffel de Bruxelas. Tal qual a antecessora, foi construída para uma Exposição Universal e deveria ser destruída depois, como tantas outras construções da exposição, mas seu impacto foi tão forte que ambas ficaram, símbolos de uma cidade e de um tempo.
Fui conhecer o Atomium.
Na primeira vez que o vi, não resisti: fui um elétron, por alguns minutos. Vivendo um momento angular, um vórtice, um spin, sonhando poder criar um novo vetor. Um vetor na direção um-um-um, perpendicular ao plano da existência. Uma pequena transcendência, ajudado pelo imenso cenário do Atomium.

O edifício é “uma mistura de escultura e arquitetura”, como eles gostam de escrever nos folhetos. É difícil descrever o conceito de sua forma para os leigos. Para começar ele chama Atomium, e os cartões postais explicam que se trata do “Atom of Iron”, mas não é um átomo de ferro. São nove esferas de aço interligadas, oito ocupando os vértices de um cubo e uma no centro do cubo. Isso tudo tem 100 metros de altura. Um famoso artista belga, escrevendo durante sua construção, dizia que alguém lhe tinha dito que não era um átomo, “era uma molécula de ferro, coisa mais difícil de achar que uma agulha no palheiro”. Bobagem. Tecnicamente, nós metalurgistas chamamos aquela forma, o cubo contendo oito esferas nos vértices e uma no centro, de “célula unitária do cristal de ferro”. O cartão postal deveria dizer isso. Preciso explicar o que é isso.

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Quando eu quero dar um charme a respeito do meu trabalho, eu digo que eu “oriento cristais”. Quase me vejo com um turbante, tocando uma flauta, enquanto aqueles inúmeros pequenos cristais dançam na minha frente, formando constelações que se formam e transformam.

Cristais. Passo o dia (e partes das noites) pensando em cristais. Do ponto de vista prático, estou pesquisando como fazer aços, aços com os quais as siderúrgicas ganhem dinheiro e os fabricantes de motores elétricos fiquem satisfeitos, mas lá bem no fundo, eu passo o dia pensando nos cristais.
Os tais aços contém trilhões de cristais. Cada cristal mede um décimo de milímetro. Eu tento imaginar como os cristais se comportam quando, depois de deformá-los (martelando-os, por exemplo), nós os aquecemos e novos cristais se formam, sem defeitos. Nós, rudes metalurgistas, que compartilhamos esse sufixo com umas poucas profissões igualmente primitivas - os demiurgos, os cirurgiões, dramaturgos – chamamos esses cristais de “grãos”.



Acho que vai demorar para eu chegar na parte mais mágica desta história. Espere um pouco, eu ainda vou explicar por que eu dava rodopios lá dentro do Atomium. Eu ainda estou no começo, contando de meu dia-a-dia. Pensa que tudo é festa? Então, todo dia estou eu aqui a tentar imaginar como um daqueles grãos (ops, daqueles cristais, é mais elegante) se deforma, como ele gira em relação a seus vizinhos e em relação à sua forma externa, macroscópica, aquilo que eu e você vemos, uma chapa de aço, por exemplo.



Bom, não é só imaginação. Faz menos de 100 anos que entendemos o que são os cristais. E que confusão. Sabe aquele cálice de cristal que você cuida com tanto carinho? Ele não é de cristal. Ele é apenas tão transparente quanto o cristal de rocha. Quando dizemos que a água daquele riacho é cristalina, estamos dizendo que é transparente como o cristal de rocha, o tal quartzo. Esse sim é um cristal. Os cristais nos chamam a atenção por terem faces planas e por uma característica que está na cara mas não é fácil perceber: cristais têm faces paralelas. Na próxima vez que você estiver numa daquelas lojas new age e estiver na dúvida se aquele objeto é um cristal ou é um pedaço de vidro polido, é só procurar pelo paralelismo das faces. Não há falsificador capaz de fazer faces tão paralelas quanto as que a mãe-natureza nos entrega.

Relembrando, quero falar sobre minha ida ao Atomium, em Bruxelas. Vocês não imaginam, mas demorei duas horas para escrever esta página. Para cada digressão dessas eu entro na Encyclopaedia Britannica, gasto minutos lendo sobre a vida de alguém, no caso, Sir Lawrence Bragg. As vezes me frustro. A Britannica não diz qual é a espessura de um fio de cabelo, informação importantíssima três parágrafos atrás.
É, mas para entender minha emoção no Atomium, você precisa saber, bem, eu suponho que você quisesse saber, ou então, quem sabe, se eu contar de maneira bonitinha você até vai gostar de saber, que a forma dos cristais, essa bela forma exterior, como naqueles cubos dourados de pirita, na forma hexagonal e transparente dos cristais de rocha, a aparência externa reflete a forma de organização dos átomos que constituem cada cristal. Olha que beleza, a aparência reflete o interior. As simetrias da estrutura interna determinam a forma externa.
Quase sempre. Ou pelo menos quando o cristal cresce isolado, ou sem restrições. Já meus pobres cristais de ferro crescem apinhados, um coladinho ao outro, de maneira que a forma externa, no meu caso, reflete a forma do instrumento que eu usei para conformá-lo. Nem por isso deixa de ser cristalino. Dentro de cada cristal de um décimo de milímetro, quaquilhões de átomos se empilham organizadamente, tão organizadamente que se eu olhar uma fila deles, que tem uns 500.000 átomos, o desvio de “retilineidade” é mínimo, menor que o diâmetro de um átomo.
Cristal então é isso. Essa estrutura de átomos organizados. E a menor parte que se repete no espaço é o que chamamos de célula unitária. Não é como uma célula orgânica, que tem paredes. A célula unitária é só o padrão de repetição. A próxima vez que você estiver olhando azulejos, digamos, ali, sentado no “trono” , se tiver sorte os azulejos terão desenhos que se repetem. Se você prestar atenção, vai ver que a forma que se repete muitas vezes é um desenho que se espalha por vários azulejos.



Ufa, chegamos lá. O tal Atomium tem a forma da célula unitária do cristal de ferro. Numa semana eu desenho pelo menos umas cinqüenta vezes aquele cubo, para tentar entender o resultado de alguma experiência que fizemos, ou interpretar um resultado que li num artigo científico. Aquele cubo. Nós, rudes metalurgistas, talvez nos contentássemos em falar da aresta do cubo, da direção da diagonal da face do cubo, ou da diagonal que atravessa o cubo de um extremo a outro, mas os cristalógrafos, pessoas finas, que estudaram física, eles dão nomes àquelas direções. Em vez de “aresta do cubo” eles nos ensinam a chamar de “direção um zero zero”. Em vez de diagonal do cubo eles chamam de “direção um um um”.
Segundo a nossa Enciclopédia Galática (acesso via Google), o obscuro arquiteto André Waterkeyn concebeu essa célula unitária de maneira que uma das “direções um um um” do cubo ficasse na vertical. Que tal? Imaginou? Se você conseguiu enxergar a posição do cubo no espaço, você compartilhou comigo um pedacinho de meu trabalho. Um cubo orientado de tal maneira que só um vértice toca o solo, uma diagonal.
Enfim, hoje em dia somos capazes analisar a posição de cada cristal de ferro num software chamado Microscopia de Imagem de Orientação, que se baseia numa uma técnica chamada Difração de Elétrons Retroespalhados que a gente faz num instrumento chamado microscópio eletrônico de varredura. Uh! Exagerei? Isso não é nada, nem tentei explicar o que é um cristal!

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Desci do trem sabendo que na porta da estação era possível pegar um daqueles city-tours. “Passa pelo Atomium? Então vamos lá”. Dia azul brilhante. 11 horas. Quinze minutos depois o ônibus entra numa avenida de duas pistas, no meio dum parque, e lá no alto, prateado, o Atomium. E eu com um filme preto-e-branco na máquina, o que foi perfeito!
Pelo menos três das nove esferas metálicas tem “janelas”, numa ligação direta com a esfera frontal da nave do “2001, uma Odisséia no Espaço”. Só uma esfera toca o chão. Quatro imensos tubos saem dessa esfera, conectando-a a quatro esferas suspensas no ar. É muita abstração, não é?
A entrada é por essa esfera que toca o chão. No centro dela, um elevador, que nos leva pelo tubo vertical, atravessando a esfera central e chegando à esfera que reina sozinha, lá em cima. Um elevador que sobe a direção um-um-um. Numa mensagem críptica aos iniciados, subi acompanhando uma discordância em cunha.
Aos 90 metros de altura, saí do elevador e cheguei no corredor de 2m de largura que acompanha a janela que circunda todo o diâmetro da esfera. Lentamente, dei uma volta pelo local. O embalo me mostrou o caminho. Continuei dando voltas, não chegava a correr, pois tinha que desviar dos outros talvez quinze que lá estavam, mas continuei dando voltas. Lá estava eu, numa esfera que representa um átomo de ferro, caminhando como um elétron em órbita. Lembro que caminhava no sentido anti-horário, sei lá porquê. E ria, por dentro. Exultava. Tipo da coisa que só se faz sozinho. Tentei pegar “o espírito da coisa”. Quando me percebia num segmento sem outros visitantes, acrescentava um rodopio, para sentir o spin e criar mais uma componente de momento angular.
Para quem não sabe, tudo que gira cria um outro ente, esse tal “momento angular”, uma “direção” que a natureza gosta de conservar. O pião fica de pé por causa do momento angular, você não cai da bicicleta por causa do momento angular, a sucessão da primavera-verão-outono-inverno acontece devido à conservação do momento angular da rotação do planeta, enquanto ele gira em torno do sol. O elétron, girando em torno do núcleo, cria um momento angular. A beleza é que o momento angular é uma transcendência. É uma direção que é ortogonal ao movimento.
Mas um elétron tem algo mais que o pião, a roda da bicicleta, o planeta. Com os outros ele compartilha ter massa, mas, único entre os demais, o elétron tem carga elétrica. Sei lá o que é isso, mas quando uma carga elétrica tem momento angular, ela cria um campo magnético. Pronto, cheguei onde eu queria. Teria eu algo mais, além da massa? Será que o pensamento, quando adquire momento angular, transcende?
Realizei ali minha cerimônia de transcendência. Fiquei feliz, por vários minutos. Uns malucos querem sentir-se poderosos como Napoleão, eu quis apenas criar um campo. Nem sei do quê. Nada como a Catedral do Ferro, para abrigar essa cerimônia.
Mas o Atomium me reservava mais surpresas. O elevador nos traz de volta até o átomo central, a cinqüenta metros de altura. Nele, uma exposição de arte cinética. Dentre outros, obras de um tal Yaacov Agam, simples e lindas. Imagens que se transformam quando você se move ao redor dela. No semi-êxtase em que eu estava, a beleza se realçava.
Daquele átomo uma escada rolante descia por outra direção um-um-um até um dos vértices do cubo. Lá, um filme sobre a construção do Atomium. Espetacular. Um filme sem palavras, só imagens acompanhadas de música. Só closes. Operários construindo a obra. Cavando a base, levantando o tubo central da direção um-um-um, arcos de dez metros de diâmetro sendo encaixados na construção da esfera superior, operários encaixando as peças com a ajuda de seus pés e mãos, mãos apertando imensos parafusos, tanto em dias ensolarados como no meio de uma tempestade de neve. Fagulhas de soldagem espalhando-se de noite como fogos de artifício, o filme transformava a arte conceitual num artesanato de grandes dimensões. O metalúrgico construindo sua catedral.

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Por fim, descemos outra escada rolante, desta vez por uma aresta do cubo, até o átomo da base. O tubo que contém a escada tem pequenas janelas redondas, a cada três metros. Pelas pequenas janelas você via, lá fora, parcelas dos grandes átomos vizinhos. Mas é uma escada rolante, ela não pára, ela te leva em frente e de outra janela você vê outra fração da estrutura. Seria legal se em algumas delas a gente pudesse “enxergar” a imensa grade de trilhões de átomos que compõe o cristal de ferro, do qual aquela célula unitária é apenas uma minúscula parte, mas que em si carrega toda a simetria do cristal. Foi assim.

Quem quiser ver mais, procure www.atomium.be.

Escrito entre 16 e 26 de agosto de 2004 Fernando José Gomes Landgraf

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